Sinto falta das suas roupas penduradas no
varal, o qual eu passava horas olhando por trás, pela linha do horizonte, como
se você ainda fosse voltar, e preso fixamente sentado na varanda vendo nossas
fotos e discos, lembrando quando você com cara de bobo olhava nos meus olhos e
cantava perfeitamente: “Let me get what I want”, e eu fechava os olhos e me embriagava nas suas notas, sua voz rouca
ajudava a compor o nosso cenário feliz de manhã ensolarada de domingo.
O contraste do sol, exposto no seu corpo tatuado
flexionado em torno de mim. Era como se você soubesse o que eu queria, me
sentia uma criança nos seus braços, talvez por ter passado a vida solitário me
sentia bem em ter alguém ao meu redor, inconscientemente aquilo me fazia mais
forte e uma pessoa melhor.
Era impressionante os nossos gostos em comum,
lembra que sempre líamos juntos Clarice toda noite antes de eu pegar no sono e
dormir segurando suas mãos? Aquele livro manchado de café nas últimas páginas, pois
caímos no sono e você derrubou ele em cima da caneca de café? Do livro que nós
nos sentíamos felizes e dormíamos esperançados e renovados para o outro dia?
Pois é, ele ainda está marcado na página que você parou, e eu nem ouso chegar
perto dele, é como se queimasse e eu sei que se eu ler novamente sem você
comigo, aquelas palavras irão me consumir por inteiro.
Você era metodicamente organizado, tudo deveria
estar em seu devido lugar, já eu sempre fui o oposto, deixava as roupas jogadas
pelo chão do quarto, perdia as chaves, documentos e você sempre me olhava com
aquela cara de reprovação, eu já sabia que você não gostava, mas acho que fazia
aquilo pra ver sua cara de raiva, com os olhos fechados e a boca levemente
cerrada como se fizesse bico. Eu não conseguia olhar nos seus olhos, pois sabia
que se olhasse por mais de cinco segundos cairia na gargalhada e você ia ficar
com mais raiva ainda.
Lembra que arranhei o seu disco do Led
Zeppelin, quando esforçadamente tentava tirá-lo da capa, você sabia, eu sempre
fui desastrado e não sou muito delicado com as mãos, sempre lutei contra a gravidade em uma guerra
que sempre fui vencido, peguei o disco do chão e coloquei rapidamente de volta ao
seu lugar, quando você voltou do trabalho, ligou o som e pegou o disco pra
ouvir, eu estava posto do seu lado e o sangue correu frio nas minhas veias,
você já estava estressado e colocou para ouvir “The Rain Song”, minha musica
favorita, você tinha prazer em me agradar e de repente no segundo solo da música,
que você imitava com a boca o disco travou, você olhou para a minha cara e eu
já ia me explicar, mas você percebeu minha cara de desespero e com a maior
calma do mundo falou que tinha arranhado o disco na ultima vez que ouviu. Foi
perceptível minha cara de alívio, daí você veio e pegou as minhas mãos como se
falasse: Se acalme,está tudo bem.
Você sempre me ouvia cantar e tinha um prazer
maquiavélico em me criticar, sentado no sofá reclamava que eu nunca alcançava
os tons, e se o Jimmy Page me ouvisse cantar iria ficar muito puto, você me
chamava de Jim Morrison tuberculoso, pois eu não conseguia alcançar os tons lentos
e eu sempre era mais eufórico e dramático do que a música exigia, eu sabia que
era verdade, mas não ligava, continuava cantando como se ninguém estivesse ali
me julgando, com os olhos arqueados e sempre com a cara de negação, mas por
dentro eu sabia que você adorava me ouvir cantar, com minhas performances
exageradas e nada artísticas, sempre caíamos na risada e eu nunca conseguia
chegar na segunda parte. Eu adorava nossas discussões infantis, onde não
chegávamos a nada e acabávamos com um pedindo perdão ao outro e ficava tudo
bem, e logo depois você vinha correndo me beijar.
Você apoiava os meus sonhos, e sempre me
impulsionava a seguir em diante, por mais esdruxulo e impossível que fosse meus
planos, passávamos horas e horas falando sobre o nosso futuro, como seríamos
dali a dez anos, como seriam nossos filhos e como seria o nosso amor depois de
tanto tempo, nós nunca fomos inconsequentes e eu sempre achei que você conhecia
a mim melhor que eu mesmo, e desse jeito eu sempre acreditava que iria ficar
tudo bem.
Talvez o tempo tenha desgastado o que
sentíamos, quebrado as pontes que nos norteavam um ao outro. Sinto irrevogavelmente
tristeza em lembrar em você ou o que poderíamos ter sido, pensei que sempre
éramos fortes o bastante para aguentar qualquer empecilho, e hoje eu sei que
não existe mais nada longe de você.
Tenho conseguido segurar firme, talvez por
querer me mostrar forte pra você, não aparentar qualquer indício de fraqueza,
pois você sempre odiou pessoas fracas e eu por dentro sempre morri de medo de
não superar suas expectativas, e quando nos encontramos pela última vez, você
perguntou da minha vida e eu respondi que estava indo muito bem, falei sem
nenhuma animação das poucas novidades que me tinham acontecido, me subiu um
gosto amargo na boca, pois não estava nenhum pouco bem e me senti ainda mais
destruído, quando você falou que tinha saído do emprego que tanto amava, e
estava prestes a mudar de cidade com uma nova pessoa que conheceu, eu não quis
aceitar que você tinha mudado e que eu não estava mais nos seus planos, me
senti impotente e ainda mais vazio.
E hoje faz dois anos e eu sei melhor do que
ninguém que ainda preciso de todo o seu cuidado, tenho que parar de me
castigar, as rosas que você me deu foram arremessadas a sete andares abaixo, mas
sou eu quem estive caindo todo esse tempo, e eu gastei todos os meus créditos,
usei todos os meus artifícios, estou só nessa guerra sem armadura, sem munição,
sou só um alvo, que com o peito em chamas espera a explosão.
Acho
que não posso fazer mais nada, eu devo ter mudado também, me tornei mais frio e
tenho tanto medo de me olhar no espelho, pois sei que não irei me reconhecer.
Hoje você está casado, tem uma filha e o que mais me dói é que ela é justamente
o que eu sempre sonhei em ter. Não posso mudar a realidade por mais que eu
pense e repense onde foi que eu errei, talvez tenha sido a circunstância a
grande culpada, quando uma coisa predestinada toma um sentido oposto, quando
não tem que ser. Mas confesso que ainda hoje mesmo que seja inconsciente, me
sento na varanda, acendo um cigarro e olho ao meu redor, respiro fundo e com a porta aberta, espero que você volte.
Escrito por Jal Vasconcelos
Editado por Jessica Sena