Sentado na porta da minha casa eu vejo o último bloco passar, com as mãos inertes sobre as minhas pernas, e na garganta um nó, escuto os ecos do frevo. Então olho para dentro de mim e encaro com relutância a realidade que fui condenado. Me embriago lentamente e aos poucos as lembranças me corroem e não me deixam em paz, agora minha mente dispara flashes íntimos aos quais eu quero literalmente ocultar.

  E a fantasia de Pierrot que estava guardada na última prateleira do armário eu fiz questão de usar, peguei o disco de Edith Piaf de repente o ambiente foi invadido pela melodia, aumentei o volume, realmente queria esquecer dos meus problemas, da nossa discussão. Aos poucos fui me desnudando e dando vida ao personagem, cada babado e paetê da fantasia, um pouco ali me escondia, por fim coloquei a máscara de Pierrot que na lateral estava um pouco rachada, da última vez que ela foi usada tinhamos ido ao baile municipal, você bêbado ficou fazendo graça e acabou derrubando no chão da pista de dança, lembro nitidamente a cara que você fez, primeiro ficou com as bochechas levemente vermelhas, depois baixou a cabeça e fez um sinal de negação, em seguida olhou fixamente nos meus olhos como que pedindo desculpas, ri muito e dei de ombros, já que tinha sido eu que insisti com a ideia de você sair com a fantasia, mesmo sabendo o seu intenso talento pra levar as coisas ao chão, você veio até mim, me abraçou e me puxou pra dançar, com aquele jeito desengonçado, você era o Pierrot mais lindo da festa. Continuei com o meu disfarce, na vitrola seguia a música l'hymne à l'amour, pus a máscara do Pierrot, como se escondesse por detrás todos os meus problemas e mágoas.

 Chegando na festa fui levado pela troça ladeira a baixo, e embalado ao som de marchinhas tristes, meu olhar por trás da fantasia se fazia tenso, pois ainda ele não tinha avistado, meus amigos me puxavam pra dançar, mas eu realmente não estava nenhum pouco interessado, será que estava tão obvio assim? que eu fui ali só pra ele encontrar? vários fogos foram lançados ao ar, e eu parei um segundo pra admirar, voltei a enxergar a multidão que em êxtase dançava sem se importar, e lá no meio de toda aquela gente, o seu olhar encontra o meu, nesse momento meu sangue corre gelado pelas minhas veias, minhas pernas tremem e tudo gira em câmera lenta, volto a olhar os fogos e tomo fôlego tentando me acalmar, de repente algo segura a minha mão com certa força, era ele com aquele sorriso impecavelmente assimétrico de outrora, meu coração acelerou e ele percebeu meu nervosismo, mas mesmo assim veio pra mais perto e tentou me beijar, eu recuei e desviei, aquele sorriso mágico se desfez. Já fazia uns dois meses que não o via, e ao enconstar no corpo dele o meu sangue ficou quente, mas foi impossível esquecer tudo e apenas me deixar ser levado por um momento de mero devaneio, não permiti ser beijado, mesmo sendo aquilo que eu mais desejasse fazer naquele momento, suas mãos soltaram as minhas que aquele momento já estava mergulhada em suor, e por fim ele me ofereceu uma rosa, e aos meus ouvidos falou: - Um Pierrot tão lindo merece uma rosa, me perdoa! Fiquei sem reação mas aceitei a rosa, e as nossas mãos pela última vez se tocaram. É impossível esquecer quando você já foi duramente desprezado. permaneci imóvel vendo ele se juntar a multidão até se dissipar.

 Ainda sinto a sua vibração e o seu cheiro ainda ronda todo o meu corpo, sonho com o calor dos seus braços, você costumava ser aquele que eu depositava toda a minha fé, mas agora eu sei que tudo relacionado a você cedo ou tarde vai ao chão, e hoje eu estou no chão juntando os cacos pois a queda foi em grande proporção. É com grande pesar que a nossa separação se faz inevitável. Não consigo encarar o mudo através de máscaras, muito menos posso ser um brinquedo ao qual você pisa quando bem quer. Apesar de tudo é impossível apagar você do meu peito, eu não acho salutar, mas quem sabe um dia eu volte a mesma fantasia usar. 

E hoje é quarta feira de cinzas, só não esperava que meu carnaval terminasse tão triste assim, eu aqui divagando em memórias que não me acalmam, que só me maltratam, e eu aproveito o ensejo... Eu jamais esqueço, sentado nos batentes da minha fachada, com o olhos anestesiados o último bloco descer a rua eu vejo, o carnaval de desilusões se despede de mim. Mas em um último momento eu me levanto, enxugo meu lamento, meu pranto, ergo o copo e bebo, e nesse traquejo sou levado ao som do frevo, tento recuperar o orgulho que ainda resta em mim, e me juntando a multidão de peito aberto eu canto o meu fracasso, meu desprezo pois fui trocado por um Arlequim.

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