Uma velha puritana quando o neto aos berros chama
A vizinhança toda estremece
 "Olha só o grito da peste"
Esta é a velha Morgana

O sol na calçada se faz escaldado
Ela acha que com o braço pesado
Pode salvar o moleque do Zé
Mal sabe ela que com seu julgamento apressado
E com sua fé falha, só conseguirá migalhas
Ela jamais conseguirá se segurar em pé

Pensa que por ter Deus invocado
Está salva de todos os pecados
Fala alto, não respeita nenhuma criatura
Acha que é dona da razão
E em tudo coloca sua reza, sua fé

Pelo mundo a fora destila sua fúria
A cada esquina da cidade por onde ela passa
O povo comenta e murmura
Seja pela praça, venda ou  farmácia
Ela fala com sua boca lotada de blasfêmias e injúrias

Lembro logo de Cremilda uma amiga bacana
Ela conhece todo o passado de Morgana
"Ela gosta de arrumar intriga, pense em uma velha rapariga
Eu sei muito bem o que ela fazia, que até o telhado do quarto tremia
E nem um caminhão de água apagava a sua chama"
A velha fazia coisa que ate o diabo dúvida na cama

Preconceituosa, perversa e atrevida
Por um alfinete ela arruma briga
Fala feito uma gralha
Faz da sua presença um tormento
Seu pensamento é turbulento, mais sujo que um galinheiro
Confuso feito uma gambiarra

Desce a ladeira em direção a feira
Não tem um tostão na carteira
O seu vale nem o prego segura, pega tomate, alface, verdura
A velha é tão trambiqueira, que vai pra casa com a bolsa cheia
Com batata, cachaça e rapadura
Nunca se viu velha mais pirangueira

Ela trabalhava em um bordel, mais popular cabaré
Já levou tapa na cara, carreira e tiro no pé
Conheceu seu marido na zona
Ele lhe deu um anel, dignidade e fama
Por um tempo ela tentou ser outra mulher
Mas no final seu espírito de puta ganhou a disputa

A noite vai pra igreja vestida com toda irônia
O véu que lhe cobre a cara esconde sua personalidade mais sombria
A água benta que lhe molha a testa corrói sua alma vazia
Ela tem medo de transparecer seus deslizes seus atos mais sórdidos e infelizes
Ela tem caso com homem casado, com seu Zé da padaria
E olhe só que covardia até com um aleijado

Vai embora da missa mas não segue a premissa
Volta a cometer novamente os mesmos erros
E no brilhar de um outro dia enrola fitas em seus dedos
Faz promessas que nem se tivesse cem vidas cumpriria
Entre a sua agonia se olha como vítima para o espelho
E ele não reflete nada bom alí havia

Ascende uma vela e enquanto ora e aos céus clama
Um pensamento lhe incomoda e lhe causa insônia:
"Será meu Deus que eles sabem o que eu guardo em baixo da cama?"






                                                    Autor: Jal Vasconcelos

Eu acordo todos os dias com as mãos em cima do meu iphone e um cheiro de queimado, já sei, a minha mãe esqueceu e queimou novamente a comida, pois estava ocupada demais dando importância aquela postagem. Já percebeu como somos tão inteligente e incrivelmente entediantes?
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-Ok amigo, tu quase me convenceu que és um gênio, mas eu também tenho o Google.
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Lindos rostos, maravilhosos corpos delineados enquadrados em um mesmo padrão embelezam a minha time line, será que a beleza foi mais vazia? Amigos aos quais nunca se importaram, será que vamos nos conhecer algum dia? Bonecos sem essência, eles vivem encarnando personagens. A arte do enfeite, a era do silêncio, bem eu acho que nada é pra sempre.
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E os nossos olhos incrivelmente mecânicos, são perfeitamente contrastantes com os nossos desejos e telas de led, e os nossos sonhos são mais uma vez comprados, afinal nós precisamos ser notados, vivemos correndo atrás de sinal Wi-Fi .
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A sua vida anda parada, ninguém curtiu suas fotos? Ninguém conseguiu ver sua lágrimas? Então coloque mais maquiagem, tire mais e mais peças de roupa, seja como o bobo da corte. Agora dê o seu melhor sorriso, coloque uma frase de superação plagiada de algum livro barato de auto-ajuda ou use Ctrl c + Ctrl v. A fórmula é incrível não acha? Faça isso e talvez alguém se importe.
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E as pessoas continuam falando os mesmos assuntos estúpidos, comprando comida pra fotografar, utilizando da mesma fórmula e imitando umas as outras enquanto a violência explode lá fora, mas ninguém se importa.
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Alguém vai me dar a mão? Ou talvez elas estejam bem mais ocupadas segurando seus androides, então me filmem enquanto sou espancado, mas façam um enquadramento que me deixe mais magro, me proporcionem meus quinze minutos de fama no noticiário global, me tornem uma lenda, digitalizem minha morte.


                                                                         - Jal Vasconcelos



 Sentado na porta da minha casa eu vejo o último bloco passar, com as mãos inertes sobre as minhas pernas, e na garganta um nó, escuto os ecos do frevo. Então olho para dentro de mim e encaro com relutância a realidade que fui condenado. Me embriago lentamente e aos poucos as lembranças me corroem e não me deixam em paz, agora minha mente dispara flashes íntimos aos quais eu quero literalmente ocultar.

  E a fantasia de Pierrot que estava guardada na última prateleira do armário eu fiz questão de usar, peguei o disco de Edith Piaf de repente o ambiente foi invadido pela melodia, aumentei o volume, realmente queria esquecer dos meus problemas, da nossa discussão. Aos poucos fui me desnudando e dando vida ao personagem, cada babado e paetê da fantasia, um pouco ali me escondia, por fim coloquei a máscara de Pierrot que na lateral estava um pouco rachada, da última vez que ela foi usada tinhamos ido ao baile municipal, você bêbado ficou fazendo graça e acabou derrubando no chão da pista de dança, lembro nitidamente a cara que você fez, primeiro ficou com as bochechas levemente vermelhas, depois baixou a cabeça e fez um sinal de negação, em seguida olhou fixamente nos meus olhos como que pedindo desculpas, ri muito e dei de ombros, já que tinha sido eu que insisti com a ideia de você sair com a fantasia, mesmo sabendo o seu intenso talento pra levar as coisas ao chão, você veio até mim, me abraçou e me puxou pra dançar, com aquele jeito desengonçado, você era o Pierrot mais lindo da festa. Continuei com o meu disfarce, na vitrola seguia a música l'hymne à l'amour, pus a máscara do Pierrot, como se escondesse por detrás todos os meus problemas e mágoas.

 Chegando na festa fui levado pela troça ladeira a baixo, e embalado ao som de marchinhas tristes, meu olhar por trás da fantasia se fazia tenso, pois ainda ele não tinha avistado, meus amigos me puxavam pra dançar, mas eu realmente não estava nenhum pouco interessado, será que estava tão obvio assim? que eu fui ali só pra ele encontrar? vários fogos foram lançados ao ar, e eu parei um segundo pra admirar, voltei a enxergar a multidão que em êxtase dançava sem se importar, e lá no meio de toda aquela gente, o seu olhar encontra o meu, nesse momento meu sangue corre gelado pelas minhas veias, minhas pernas tremem e tudo gira em câmera lenta, volto a olhar os fogos e tomo fôlego tentando me acalmar, de repente algo segura a minha mão com certa força, era ele com aquele sorriso impecavelmente assimétrico de outrora, meu coração acelerou e ele percebeu meu nervosismo, mas mesmo assim veio pra mais perto e tentou me beijar, eu recuei e desviei, aquele sorriso mágico se desfez. Já fazia uns dois meses que não o via, e ao enconstar no corpo dele o meu sangue ficou quente, mas foi impossível esquecer tudo e apenas me deixar ser levado por um momento de mero devaneio, não permiti ser beijado, mesmo sendo aquilo que eu mais desejasse fazer naquele momento, suas mãos soltaram as minhas que aquele momento já estava mergulhada em suor, e por fim ele me ofereceu uma rosa, e aos meus ouvidos falou: - Um Pierrot tão lindo merece uma rosa, me perdoa! Fiquei sem reação mas aceitei a rosa, e as nossas mãos pela última vez se tocaram. É impossível esquecer quando você já foi duramente desprezado. permaneci imóvel vendo ele se juntar a multidão até se dissipar.

 Ainda sinto a sua vibração e o seu cheiro ainda ronda todo o meu corpo, sonho com o calor dos seus braços, você costumava ser aquele que eu depositava toda a minha fé, mas agora eu sei que tudo relacionado a você cedo ou tarde vai ao chão, e hoje eu estou no chão juntando os cacos pois a queda foi em grande proporção. É com grande pesar que a nossa separação se faz inevitável. Não consigo encarar o mudo através de máscaras, muito menos posso ser um brinquedo ao qual você pisa quando bem quer. Apesar de tudo é impossível apagar você do meu peito, eu não acho salutar, mas quem sabe um dia eu volte a mesma fantasia usar. 

E hoje é quarta feira de cinzas, só não esperava que meu carnaval terminasse tão triste assim, eu aqui divagando em memórias que não me acalmam, que só me maltratam, e eu aproveito o ensejo... Eu jamais esqueço, sentado nos batentes da minha fachada, com o olhos anestesiados o último bloco descer a rua eu vejo, o carnaval de desilusões se despede de mim. Mas em um último momento eu me levanto, enxugo meu lamento, meu pranto, ergo o copo e bebo, e nesse traquejo sou levado ao som do frevo, tento recuperar o orgulho que ainda resta em mim, e me juntando a multidão de peito aberto eu canto o meu fracasso, meu desprezo pois fui trocado por um Arlequim.